quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Os chapéus de Mrs Longshire

Gainsborough


Antes do casamento, ela quis que todas as divisões ficassem impecavelmente decoradas. O hall de entrada e a sala eram a menina dos seus olhos: com vista para o jardim de relva bem cortada e flores dispostas em pequenos canteiros: tulipas, narcisos, amores-perfeitos… Nenhuma planta seca podia existir. Nenhuma erva daninha podia ser vista. Nem folha amarelada sequer. Só no outono. A casa e o jardim tinham de ser perfeitos.

No hall de entrada, sobre uma mesa redonda, um bule e chávenas muito finas repousavam em tabuleiro com paisagem de corrida de cavalos e damas usando fantasiosos chapéus.

Na sala contígua, havia um piano no recanto preferido, bancos de veludo, canapé, chaise longue, estante com livros, reposteiros em mousseline… Uma tapeçaria cobria quase toda a parede e uma carpete da Índia acolhia o velho e sonolento labrador. No móvel envidraçado, brilhavam cristais ao lado da antiga loiça inglesa.

Instalados na casa, Mrs Longhsire exigia o máximo de ordem e repetia que o seu desejo seria sempre o querer do seu amado esposo. Por isso, ele partilharia do rigor na organização da casa. Seria interdito o ruído de vozes ou gargalhadas estridentes. Todo o cuidado deveria ser mantido com os objetos para preservar a silenciosa harmonia da mansão.

Ao lado do seu quarto, com cama de dossel, outro compartimento havia onde se arrumavam os chapéus. Em caixas redondas e aveludadas. Cada caixa tinha uma legenda e a ordem não podia ser alterada.

Logo pela manhã, Mrs Longshire dava um passeio a pé através do longo jardim, enquanto o marido ficava deitado a repousar mais um pouco. Mal a sua figura se ia tornando pequenina com a distância, Mr Longshire recebia as criadas do quarto com alegres gargalhadas. O seu momento preferido era quando experimentavam, histriónicas e teatrais, os chapéus de Mrs Longshire e se voltavam para ele, como se se vissem a um animado espelho.

Quando regressava do passeio, Mrs Longshire pedia um chá na sua chávena de biscuit. Sem antes se aproximar do quarto e dizer com voz suave: bom dia, meu amor. Já não estás só. Vem saborear a manhã e ajudar-me a escolher o chapéu que vou usar contigo logo à tarde.

Tema sugerido em Ateliê de escrita em Serralves, a partir de retrato de mulher.

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