quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Passeio noturno

Era madrugada. A cidade dormia sem calor e sem paixão. A lua refletia-se no edifício espelhado da avenida larga e deserta. Um carro passava de vez em quando. Depressa. Sem respeitar os semáforos que se acendiam e apagavam, dando à cidade uma respiração intermitente.

O silêncio frio e brumoso foi interrompido pelo latir de um cão. E pela voz exaltada de um velho mendigo. Homem e animal eram companheiros de todas as noites e de todos os dias. A conversa/monólogo irrompia pela passagem de uma pessoa do outro lado da avenida. Alguém extravagante que caminhava pausadamente, levantando os olhos para o prédio que captava a luz da lua. Ou do luar?

O mendigo, não se importando com o rosto da pessoa que passava, fixou sobretudo as pernas altas e as mãos longas. O néon de alguns anúncios, os semáforos e a luz da lua desenhavam os contornos da figura notívaga que se deslocava quase deslizando no passeio para reduzir o ruído dos saltos altos.

E o velho começou a atirar palavras como pedras. Que fosse sujar outra rua. Que aprendesse a ser homem. Que andasse sem sacudir o rabo. Que mais valia morrer do que ser homem e parecer mulher. Que era melhor viver na rua do que num prédio com gente de sexo duvidoso. Que preferia descansar no cartão já gasto e sujo a fazê-lo num colchão onde um gajo efeminado tivesse dormido…

Ia despejando os impropérios, enquanto aquele ser desenhado na noite se afastava devagar, subindo a avenida. Sem se perturbar. Sem acelerar o passo. Sem responder aos insultos. Caminhava meneando o corpo em ritmo lento. Sobretudo as ancas. E os ombros. E os braços. E talvez os olhos. E também a alma.

O cão acompanhava a áspera ladainha, ladrando, enquanto se aconchegava sobre o cartão e se encostava ao dono, buscando e dando calor.

Era longo o som raivoso das palavras, do latir do cão e dos passos pausados que iam pisando o passeio.

Houve até duas janelas que se acenderam. Mas logo a luz se apagou.

O vulto deslocava-se ao ritmo lento das nuvens e da lua.

Fazendo cessar o ruído cadenciado do andar, entrou no edifício espelhado. Resplandecente de luz feminina.

Antes de fechar a porta, ainda olhou para o fundo da avenida. O velho sem-abrigo e o cão tinham-se calado e pareciam dormir. Daniela respirou fundo. Podia finalmente descansar.


(Produzido no ateliê de escrita, em Serralves, há uns três anos)


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