quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Natal sem história

Van Gogh

Este Natal seria diferente.. A prenda que Dora tinha sugerido era ir passar a noite de Natal com alguns sem-abrigo do Porto. A família concordou. Juntar-se-iam no dia de Natal para o almoço.

Para levar, fez um prato de rabanadas, pondo, por cima, o molho que lhe tinham ensinado e que levava bastante mel. Colocou as rabanadas num prato grande e fundo, despediu-se da família e caminhou até á instituição.. Alguns ela já conhecia, porque os via quando passava para o trabalho. Vinham tomar um banho, beber uma bebida quente, desabafar as mágoas…

Quando chegou à Instituição, a mesa já estava posta. No fogão, ferviam as batatas, o bacalhau e as couves. Os convidados foram chegando. Alguns já tinham estado na instituição, mas por pouco tempo. Sentiam o apelo da liberdade da rua. Tinham-se habituado a não seguir regras, a beber, a passar noites em claro, a insultar sem ter de pedir desculpa…

Um casal chegou com uma criança pequena. Estavam felizes por serem pais daquela menina e de, finalmente, viverem numa casa. Chegou depois um homem com restos de antiga beleza. Outro tinha um gorro cinzento na cabeça e olhar cavalgante e rápido. Quase ao mesmo tempo, chegou o George, de um país de leste, com um instrumento de sopro para tocar depois da ceia…

Daí a nada, estavam todos à mesa e com o prato fumegante. Eram muitos e não pareciam à vontade. Havia desconfiança, apesar de fingirem estar bem. Uns riam com a boca desdentada e escancarada, outros sorriam sem levantar os olhos do prato. E comiam pouco.

Depois da sobremesa, onde não faltava a aletria, o bolo-rei e as rabanadas com mel, os diretores leram postais de boas-festas. Depois anunciaram mais um momento de partilha. A Liza, uma adolescente amiga da instituição, de rosto aveludado e longos cabelos castanhos, iria tocar flauta e, em seguida, George tocaria uma música de Natal do seu país. O terceiro número seria depois anunciado.

Liza, com os seus gestos calmos e refletidos, ajeitou a flauta e começou a tocar. Alguns dos presentes agitavam-se no banco corrido. Ou porque aquela música suave mexia com eles, ou por ser a primeira vez que a ouviam…

Um dos sem-abrigo, Aristides, disse de forma desajeitada: Oh, vamos mas é cantar o apita o comboio… Liza continuava a tocar. George olhava-a com delicadeza.

No fim, todos aplaudiram e alguns aproveitaram para exteriorizar o que sentiam. Muitos deles tinham cantado na escola, na catequese e até em casa. A alguns apetecia dizer que tinham adorado aquela música, que lhes tinha tocado a alma; outros sentiam raiva por não terem tido carinho, apoio, palavras, sorrisos, olhares, elogios… tanta coisa que deles fugiu ou nunca se aproximou. Ou que deixaram voar.

E.. finalmente, iriam ouvir o Silva, outro sem-abrigo de muitos conhecido, ler uma história que ele próprio tinha escrito. Silva levantou-se de um canto onde quase se tinha escondido. As mãos tremiam-lhe, a voz tinha quebras e os olhos pareciam húmidos.

Disse então:

- Não sei por que se lembraram de mim. Eu até nem tenho jeito para estas coisas. De escrever ainda gosto, porque estou calado, embora esteja sempre a ouvir coisas que se passaram comigo há muito tempo e com outras pessoas. Pois, vou, então, contar a história do sem-abrigo que fazia casinhas com caixas de fósforos…

Houve risos e Aristides disse em voz alta: as tuas casas têm teto?

O Silva conhecia o Aristides porque haviam disputado a mesma entrada coberta de um prédio no Porto. O Silva, inseguro e tímido, disse em voz baixa:

- Desculpem, mas não consigo ler. E preparei-me bem como me pediram. Tenho de me sentar.

Aristides ainda cantarolou: Ai és tão boa…

Liza, embora não estivesse previsto, recomeçou a tocar. George improvisou a seguir. Enquanto Lisa tocava, o Silva sorriu-lhe e, no final, indicou-lhe a sua morada e pediu-lhe que passasse por lá no dia seguinte, dia de Natal, ao fim da tarde. Queria oferecer-lhe uma casinha de fósforos que iria fazer para ela.

Dora a tudo assistia. No dia seguinte, passou pelo local onde Silva costumava instalar-se. Viu-o a trabalhar com os fósforos, aproximou-se dele e disse-lhe que gostava de ouvir a sua história de Natal.



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