segunda-feira, 23 de julho de 2012

O solitário da rua



Uma noite, depois dos trabalhos habituais no quintal (a harmonia das plantas ajudava-o a construir a sua própria harmonia), sentou-se na sala, como de costume. 

No copo, o vinho tinto exalava um colorido e calmo aroma. Abriu o livro O tempo envelhece depressa, de Antonio Tabucchi, mas logo o fechou. 

Dirigiu-se à estante e pegou numa coletânea de poesia de Fernando Pessoa. Mais uma vez, veio até ele o poema Tabacaria do heterónimo Álvaro de Campos:

“Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo
…”

Não conseguiu prosseguir. Apeteceu-lhe chorar. Dentro de si, ouvia vozes antigas: um homem não chora!

Chora sim, por que não? E fala, e sente, e sofre, e ri, e ama, e desespera, e espera, e acredita, e desconfia…

De dia, a repartição acolhia o funcionário público exemplar; ao fim da tarde, a casa recebia o homem completo. Com as incompletudes que se lhe incrustaram à pele e à alma desde a infância.

E releu:

“Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo
…”

Encostou a cabeça no sofá e recordou as peripécias do dia. E viu-se com uma infinidade de pessoas a quem se aplicavam, também, aqueles versos.

Só os versos?


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