quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

O Natal do "tio solitário"

Lá por ser Natal não deixava de ter o mesmo sentimento: muitas pessoas ligavam-lhe ou procuravam-no porque precisavam dele. Como trabalhava numa Repartição pública, queriam saber se os impostos iam aumentar, se afinal ia haver o subsídio ou era apenas um-faz-de-conta, era só uma perguntinha, não queria incomodar. mas não queria acabar o ano sem ter uma resposta, que desculpasse mas a crise andava a dar a volta ao miolo a muita gente...

Alguns vinham tocar à campainha. E tinham pontaria. Era quando já andava de galochas no quintal, quando estava a ouvir a parte da música que mais o seduzia...

Há anos que tinha o hábito de oferecer presentes à família. Podia justificar com a crise, mas gostava de dar. por isso, por ele, não acabava com a tradição. Mas também tinha concordado com uma proposta surgida na família: cada um daria só uma prenda de "amigo secreto". Quem quisesse podia dar um presente feito por si. Em conversa, à volta da mesa, bebendo chá e comendo bolo-rei, sobretudo os mais novos tinham dito: como é que eu posso oferecer alguma prenda feita por mim se eu não sei fazer nada? Claro que sabes - tinham dito os mais velhos, incluindo o tio solitário: um poema, cantar uma canção, escolher uma letra de uma música, um desenho, uma colagem...
Uma das tias mais velhas disse: já sei o que vou fazer. O melhor é fazer como uma amiga minha: começar ainda este mês.

No dia de Natal, depois do almoço com os pais - felizmente ainda estavam vivos e talvez por isso  havia muitos momentos que o faziam entrar diretamente nos tempos há muito idos da infância -, os irmãos e os sobrinhos, pegou no carro e saiu. Ninguém estranhou porque era assim o "tio solitário".

Pôs um CD de Ella Fitzgerald e dentro de algum tempo estava em Espanha. As pessoas, em grandes grupos de amigos, de familiares com muita criançada passavam como bandos de pássaros felizes. Ele, homem solitário, ouvia mais fundo a voz da solidão. Incomodava-o ver tanta felicidade nas vozes altas e nos estridentes e abertos sorrisos. sabia, porém, que não era inveja nem queria o mal dos outros.

Era das únicas pessoas que, por onde passava, andava só. Porém, se calhar, apesar da exibição de tanta e estimada auto-estima, não seria o único que estava só.

Continuou a caminhada. Por absurdo, atraía-o aquela confiante alegria, apesar do tal incómodo de só ver harmonia à sua volta. Doía-lhe estar só, mas, naquele momento, precisava de estar só.

Sentou-se numa esplanada, sem pensar em nada, embora parecesse pensativo, e pediu um café. Numa mesa ao lado, alguém o olhava. os olhares cruzaram-se. Olá, como está? Que bom encontrá-lo, andava há tempos para o procurar. Queria que me explicasse por A+Bê a alteração do IRS para o próximo ano. Desculpe lá ser neste dia, mas já que estamos aqui...

O "tio solitário" olhou-o, desejou-lhe bom Natal, e desatou a rir. O interlocutor pensou que ele estava doido, bebericou o resto da cerveja e saiu com a mulher, os sogros e os quatro filhos.



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