sexta-feira, 10 de maio de 2013

O casaco camuflado ou a menina guerreira



Para a Crisa

Chega à aula uns minutos depois do toque de entrada. Traz vestido um casaco camuflado. Entra esbaforida. A professora faz um comentário.
- Vieste da  guerra?
- A menina cora. E sorri.  Com uma expressão de querer responder para mostrar a sua irritada contrariedade. Nisto, cai-lhe o telemóvel do bolso. Pensa:  um mal nunca vem só.
A professora retoma a aula: estrutura externa e interna de Os Lusíadas.
Já sossegada, a menina guerreira escreve o que está a ser registado no quadro.
Os olhos viajam entre o quadro e o caderno. Quase nem ouve o que é dito. Ora, que pergunta: vieste da guerra?! Sim, vim, apetecia-me dizer. A professora é que já passou a adolescência há muitos muitos anos, senão devia saber que um adolescente tem de enfrentar muitas guerras. Não é por isso que uso o casaco camuflado, mas sinto-me em guerra, sim, senhora, e depois? Não é fácil organizar as ideias sobre a escola, sobre as pessoas que amamos, sobre as pessoas de quem gostamos, sobre as pessoas de quem não gostamos… Se isto não é guerra, o que é então?
Apaixonei-me pela poesia de Fernando Pessoa. A paixão foi avassaladora e ando sem vontade de estudar outras coisas. Eu gosto do Felizmente há luar e do Memorial do Convento (parece que estou a ouvir a professora: meninos,  sublinhem o título das obras!), mas custa-me concentrar-me. Quando me sento para fazer os trabalhos, tenho fome, o telefone começa a chamar-me, quero saber as novidades do facebook, preciso de falar com a minha mãe... e também me apetece escrever, mas sobre outras coisas. Falar de mim e de pessoas especiais. Sinto tanto para o pouco tempo livre de que disponho!
E para as guerras com que me debato. Algumas eu calo, outras não consigo. Fico ferida com coisas que me dizem. Quem não sente não é filho de boa gente. Refilo muitas vezes porque acho que tenho razão. Ou talvez não, nem sei. Vejo-me ao espelho e gosto do meu rosto. Dizem que tenho um sorriso bonito e concordo, embora pareça vaidade. Já publiquei dois contos em livros da escola. Os trabalhos foram a concurso e foram selecionados. Não tive um primeiro nem segundo prémio, mas o júri reparou no meu trabalho. E foi muito fixe.
Mas muito mais fixe seria se eu não estivesse sempre em guerra. E não é com os outros, é preciso que se diga, é comigo própria. Gosto de me rir, mas também preciso de chorar. Não sou só eu que sou assim, mas não o consigo esconder!

No final da aula, fecha o caderno, veste o casaco camuflado, aproxima-se da professora e diz sorridente: afinal, vou à visita de estudo!

2 comentários:

  1. Este texto fez-me recordar o diário de Mariana... será que adotou um novo formato?

    Já estou com saudades dela. Às vezes até lhe enviava uns conselhitos. Mas não sei se lhes achou graça ou se os dilitou. Pode ser que um dia se lembre de voltar ao diário, pode ser...
    Bjs
    CS

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  2. Olá! Ainda bem que falas dela, porque sei que anda com saudades de escrever. Não tem calhado, mas um dia destes, ela partilha mais uma página do seu diário. Este foi mais um estímulo. Obrigada. E de certeza que quer conselhos.

    Um beijinho
    M.

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