sábado, 2 de agosto de 2014

DOMINGOS MIRA FLOR




5 – Domingos nem queria acreditar

“Sim, Domingos? Desculpa ligar-te a esta hora. Ainda não são sete da manhã!”
“Ia mesmo agora telefonar-te. Está tudo bem contigo? Sempre que vim à varanda, vi sempre a tua luz acesa!”
“Comigo está, mas tenho de ir para a aldeia agora de manhã. O meu pai precisa urgentemente de mim. Ontem, o meu irmão telefonou-me. Estivemos a falar muito tempo e chegámos à conclusão a que eu há muito tinha chegado.”
“Qual? Posso saber?”
“Como estou reformada, tenho de ajudar o meu pai. Para mais, o meu irmão é mais novo do que eu e continua no ativo.”
“Queres, então, dizer que vais deixar o Porto para ires viver na aldeia do teu pai?”
“Pode ser apenas por algum tempo, mas não posso sobrecarregar o meu irmão e o meu pai está cheio de saudades minhas.”
“E se convencesses o teu pai a vir morar contigo? Eu podia colaborar”.
“Também já pensei nisso, mas, mesmo que o convença, vai demorar algum tempo. As coisas dele estão todas lá”.
“Mas aqui, pode-te ter a ti”.
“Eu sei, Domingos, mas não posso tirá-lo das suas raízes, assim de repente. Na aldeia, tem alguns amigos e um deles está tão presente que parece viver com ele, apesar de já ter morrido há muito tempo.
“Quem?”
“Camilo Castelo Branco. Tem uma sala recheada dos mais diversos objetos e de coleções de livros do escritor.”
“Não sei que te diga, Flor”.
“Podes ir lá visitar-me. O meu pai gostará de te conhecer e de te mostrar a “Sala dos Retratos e de Camilo”.
“Não te posso impedir, Flor, mas o dia que agora começa já me parece noite”.
“Não exageres, Domingos”. Montalegre não é tão longe como isso”.
“Também não exagero se te disser que não nasci para tanta felicidade, como a que eu estava a sentir.”
“Domingos, tenho de ir. O comboio é às 8.30, em S. Bento. Estive até tarde a fazer a mala. Levo só o que é essencial. É verdade, o gato apareceu?”
“Procurei-o durante horas e fui encontrá-lo na varanda, a dormir.
“Ainda bem.”
“Devo estar a ficar louco. Agora, ainda mais.”
“Vamos ser práticos, Domingos. Não morreu ninguém, nem ninguém está doente. Terás de compreender a situação. Já chamei um táxi. Acompanhas-me à estação?”
“Vou já ter contigo e ajudo-te a levar as malas até ao largo”.
“Obrigada, até já, Domingos.
“Até já, meu amor (esta expressão sempre lhe fora tão difícil de dizer! Já nem se lembrava de a ter pronunciado!)”.

Entraram e saíram do táxi quase em silêncio. Durante o pequeno trajeto, rua Mouzinho da Silveira acima, ela pegou-lhe na mão, prendendo-a com força. Entraram na estação revestida de azulejos azuis. O relógio redondo mostrava as horas com certeza e nitidez. Eram oito horas e vinte minutos. O comboio já lá estava, engolindo, ainda devagar, os passageiros que iam entrando.
Domingos e Flor pararam junto da porta da carruagem. Domingos prendeu-a pela cintura, abraçou-a e beijou-a. De um beijo assim não se lembravam. A cara era de espanto de muitos passageiros que iam chegando. Para Domingos e Flor, a vida era deles, até esta maravilha ter ponto final.
Domingos ainda disse a Flor: “Quando chegares, dá notícias. Fico à espera”.

(Continua, sem Flor, na rua chamada das Flores)

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