sábado, 30 de agosto de 2014

Céu(s) de Kotor, Montenegro


segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Varandas do Porto




DOMINGOS MIRA FLOR



11. Noite e dia
À noite, Domingos abriu a porta da varanda de par em par. Chamou o gato que se aninhou a seus pés. O movimento de turistas havia abrandado na rua. Talvez pelo frio. Talvez pelas névoas que se adensavam, derramando-se como orvalhada de S. João. O tempo estava meditativo. Tal como ele. Olhando a varanda de Flor, recordou o bem que aquela mulher lhe trouxera. Ela tinha mudado a sua vida. Dera-lhe alento e confiança. Tornou-o menos ensimesmado, como tantas vezes se sentira. Sabia que os vizinhos o olhavam como alguém que ficara de um mundo já passado. Dava-lhe, agora, vontade de rir ter usado, durante tantos anos, camisa longa de dormir.
Um dia, Flor disse-lhe: “as tuas camisas podem ter utilidade. Por que não as ofereces à D. Bininha? Está desempregada e começou a fazer bonecas de pano para vender no Palácio das Artes. É uma maneira de ajudar quem tem menos”.
E assim foi. Flor tinha um espírito aberto e prático. Em pouco tempo, transformara-lhe o corpo e a alma. Ela dizia, meigamente, que não o queria mudar, mas apenas desapertar certos atilhos.
Sentindo-se amado, acarinhava cada vez mais o mundo. Comunicava com mais à vontade e o olhar alargava-se no horizonte, sem nunca deixar de amar a sua rua com as suas varandas.
Com Flor, podia falar de tudo, sem ter de escolher ou esconder as palavras. Com ela, era ele próprio, sem culpabilidades, sem necessidade de máscaras ou momentos de representação. Sabia que deveria haver alguém assim, mas, até conhecer Flor, não sabia da sua existência.
O gato, bom bichano, ajudara a falar com Mira Flor, que há muito Domingos mirava da sua varanda.
Ela tinha-lhe incutido confiança e auto-estima.
Uma manhã, ao espelho, deu consigo a dizer para os seus botões: “não estou nada mal e não sou nada feio, carago”. E lembrou-se da mãe, para quem carago era o maior palavrão utilizado.
Estava apaixonado, como nunca estivera, se paixão era deslumbrar-se com a Vida e com alguém. Devia-lhe muito. Teria de a presentear por tudo o que lhe tinha proporcionado. Flor abrira-lhe portas que há muito julgava fechadas.
O gato, a seus pés, dormia feliz.
Antes de se deitar, Domingos marcaria o número da última chamada.

(Continua, com Domingos a aceitar o convite de Lurdes).



12. Viagem

Lurdes, sempre com o telemóvel por perto, logo o agarrou quando os primeiros toques se ouviram.
“Sim, Domingos, vais dizer que sim?”
Domingos reparou na forma de tratamento. Sempre se trataram por você e, de repente, é tu-cá-tu-lá…
“Estou, Domingos, estás a ouvir-me?”
“Sim, Lurdes, estou a ouvir bem”.
“Fiquei contente por teres telefonado e até te tratei por tu.”
“Sim, reparei”.
“Também já nos conhecemos há tanto tempo!”.
“Por mim, não há problema”.
“E, por mim, ainda menos. É mais fácil para conjugar os verbos.
“Em muitos casos, é, sobretudo no conjuntivo”.
“Então, vais a Montalegre connosco?”
“Estava para ficar, mas decidi ir, se ainda houver lugar no autocarro”.
“Claro que há. Já te reservei um lugar, porque a minha intuição dizia-me que ias aceitar o convite. Vai valer a pena, verás. Teremos um encontro com o Padre Fontes, o que é sempre motivo de interesse.”
“Sim, imagino. Ainda não sei se vou participar de todas as atividades previstas”.
“O mais importante é que vás e te divirtas. Cada vez me convenço mais de que a vida são dois dias e é preciso aproveitá-los”.
E ficaram mais algum tempo ao telefone, a combinar a hora da partida, de chegada, o local de reunião de grupo, os preços do transporte, do hotel, do restaurante…

(Continua, com Domingos surpreendido, ao olhar a varanda de Flor.)




13 - Dúvidas

Domingos não conseguia dormir. Como iria reagir Flor quando o visse? Dar-lhe-ia um abraço, mostrando-lhe a sua felicidade? Perderia o sorriso luminoso e apagar-se-ia a chama que sempre mostrara para com ele?
Podiam até nem se encontrar, ocupada que andaria ela com os assuntos de família.
E o sono que não vinha. E as indecisões a atormentá-lo. Não queria perder Flor. Essa perda seria voltar aos dias murchos, sem viver a vida por dentro.
Quase desesperando, veio à varanda. A luz da casa de Flor estava iluminada.
Tinha de lhe ligar. E se era um assalto? Iria preocupá-la. Optou por ligar-lhe para o fixo.

(Continua, com Domingos a perder, definitivamente, o sono).



14 – Surpresa

“Estou”.
“Sim, Domingos”.
“Fiquei preocupado quando vi a luz acesa em tua casa”.
“Cheguei há pouco. Como era tarde e vi tudo apagado, julguei que estavas a dormir”.
“Vens de vez para o Porto, ou estás de passagem?”
“Nem uma coisa nem outra, Domingos, mas amanhã falamos com mais tempo”.
“Estava com tantas saudades tuas, Flor”.
“Como eu, Domingos. Nem imaginas”.
“Amanhã, vamos tomar o pequeno-almoço ao café do Olival?”
“Preferia que viesses cá a casa. Trouxe pão caseiro, queijo e compota de abóbora que vais adorar”.
“Flor, obrigado, irei bem cedo”.
“Dorme bem, Domingos. Também trouxe alheiras para o jantar”.
Domingos respirou fundo. Sempre fora discreto, mas apetecia-lhe gritar aos sete ventos que era feliz. Sim, era feliz. De pleno direito, carago!
O sono chegaria pela madrugada.
Quando atravessou a rua, ainda deserta de turistas, e entrou em casa de Flor, logo lhe cheirou a café.

(Continua, com Flor a comunicar uma inesperada decisão).


15 – Aconchego

Domingos entrou e deparou com a mesa já posta. Sobre a toalhinha de linho, as duas chávenas, os dois pratinhos, um frasco de doirada compota, um quejinho pequeno, um cestinho com pão escuro às fatias e a cafeteira fervia de um vigoroso café.
Flor logo o abraçou. Domingos sentia-lhe o corpo e prendeu-a, conservando o aconchegado silêncio.
Saboreando também as frescas delícias, chegadinhas de Montalegre, Flor explicou a sua vinda assim repentina: o irmão tinha sabido, ao fim da tarde da véspera, de uma reunião no Porto, que reclamava a sua presença. Teria de vir. Flor, se quisesse, poderia acompanhá-lo. O pai estava bem, tinha podido, ao longo destes dias, matar muitas saudades. E concordada que Flor regressasse ao Porto, conquanto fosse cumprida a decisão tomada em família.
“E o que foi combinado, Flor?”
“Depois de termos conversado, decidimos que eu passaria um mês no Porto e outro em Montalegre. A maior parte da minha vida passei-a no Porto, mas, de facto, as minhas raízes estão na aldeia onde tenho o meu pai”.
“Os invernos, lá, são muito duros”.
“Não são mais do que na minha infância. Conheço-os bem”.
“Contigo fora, um mês é muito tempo”.
“Domingos, o meu pai dirá a mesma coisa, porque a solidão também lhe pesa”.

E continuaram a falar, enquanto Domingos ia pondo mais café na chávena.

(Continua, com Domingos a lembrar-se, de repente, da viagem combinada com Lurdes).


16 – Novos ritmos

Domingos disse a Flor:
“Se assim queres, também concordo. Ninguém é dono de ninguém, mesmo que o amor seja imenso. Contigo reaprendi o dever e o direito da liberdade”.
“Viveremos esse mês, em que estamos juntos, com mais intensidade. Ainda vai ser melhor, Domingos. Assim não haverá o desgaste da monotonia.”
“Contigo não há monotonia, Flor”.
Depois de um prolongado abraço, Domingos ainda disse que, no dia anterior, nem lhe passaria pela cabeça que estaria ali com Flor. Para quem não gostava de surpresas…
E contou-lhe o que havia combinado com Lurdes e o reencontro que tivera. Flor achou graça e sugeriu que integrassem o grupo, quando houvesse outras visitas. Há tanta coisa a descobrir, às vezes tão perto de nós. E se o grupo é animado, tanto melhor, Domingos. Lurdes era avassaladora?! Nada que não se pudesse resolver. Lá terá as suas razões, disse magnânima.
De momento, convinha era ligar-lhe para desmarcar a viagem.
Um dia, iriam os dois a Montalegre, sugeriu Flor, com um sorriso ainda de menina, e conversariam com as sábias mulheres que percorrem os montes à cata de plantas que curam maleitas do corpo e da alma. Sabem os nomes das ervas como os dos filhos.
E continuaram abraçados, enquanto a manhã se acendia.
Olhando a varanda de Domingos, Flor disse que, se aceitasse, ele ficaria, para sempre, com o seu canteiro. 
Feliz, Domingos mirou Flor. Olhando-se, sorriram, como só sorriem as pessoas que se olham e se amam.

(Não continua, porque de pessoas felizes bem mal se rezam histórias.
Mas como nada é definitivo…)


sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Contraste



DOMINGOS MIRA FLOR



10 – O convite
Domingos, apesar de não reconhecer o número, atendeu a chamada. Era Lurdes.
“Sim, Domingos, está tudo bem consigo? Não tinha a certeza se era este o seu número atual”.
“Nunca o alterei. Então, o que se passa?”
“Queria fazer-lhe um convite”.
“Pode dizer. Desculpe falar sem entusiasmo, mas não ando muito animado”.
“Por isso mesmo, acho que a minha proposta até lhe fará bem. O meu grupo vai realizar uma viagem a Montalegre, desta vez, na rota dos chás e das plantas aromáticas. Gostava que nos acompanhasse. É no próximo fim de semana”.
“Obrigada, Lurdes, mas não posso aceitar esse convite.
Lurdes insistiu, como era seu hábito, e Domingos acabou por dizer que a namorada era de uma aldeia de Montalegre, havia ido lá por uns dias, tinha muitos assuntos familiares a tratar, e não queria, por isso, incomodá-la e, muito menos, surpreendê-la.
E logo a insistência de Lurdes se fez notar.
“Domingos, será uma maneira de a rever. Ela ficará contente, de certeza.”
“Não, Lurdes, vou ter de recusar o convite”. Ela não gosta de surpresas”.
“Por que não a avisa, então? Ela não se interessa pelo tema?”
Que sim, até se interessava muito. Um canteiro de aromáticas tinha sido mesmo motivo de aproximação, mas, não, não podia aceitar.
Lurdes não desistia. Que seria uma maneira de celebrar o início do namoro. E também de conviver, porque Domingos lhe parecia murcho. Ora, não se ia refugiar em casa. Por amor de Deus. A vida era para ser vivida e não apenas pressentida. Vá lá, Domingos. E o grupo era ótimo e animado. Pelo ar, ele andava a precisar de animação. Queria que, quando a amiga chegasse, o visse acabrunhado? Veja lá.
Domingos sentia vontade de desligar, perante a insistência e teimosia do convite, encontrando uma solução.
“Desculpe, Lurdes, tenho de desligar. Estou à espera de uma chamada urgente”.
“Domingos, ficou com o meu número gravado. Ligue-me, se mudar de ideias e espero que mude. Se for a Montalegre, vai gostar, vai ver.”

Não iria sequer responder. Há uns dias que não falava com Flor. Sabia que ela andava muito ocupada. Não queria perturbar o seu ritmo, mas já tinha saudades.

(Continua, com Domingos a repensar a sua decisão).

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Sol de proximidade



DOMINGOS MIRA FLOR


          9 – Uma visita inesperada



Uns dias depois, bateram à porta de Domingos, que regressara minutos antes de um pequeno passeio a pé, enquanto a cidade renascia e ainda mostrava matinal humidade azul. Quem seria? Não costumava receber visitas. Com os vizinhos, falava quando se cruzava com eles, na rua. Seriam queixas por causa do gato, que voltava a fazer das dele? Abriu a porta da varanda e espreitou.
Deparou com um grupo grande. Uns de mochila, outros de carteira a tiracolo. Todos com ar de turistas que vão revistando e revisitando lugares históricos das cidades. Andavam na rota do Barroco. Caminhavam rumo à Igreja da Misericórdia.
Isto foi explicado por Lurdes que, ficando um pouco para trás, batera à porta de Domingos. Lembrava-se de, uma vez, ele lhe ter dito onde morava. De nada se tinha esquecido.
Domingos manteve-se na varanda.
“Como passei por aqui, lembrei-me de tocar”. Quer ir ter connosco aos Clérigos? A seguir à Misericórdia, visitaremos a Igreja. O padre Arménio será o nosso guia. Promete. Venha daí”.
Que não, obrigado pelo convite, tinha chegado há pouco. Ficaria para outra oportunidade. Gosto em vê-la. Boa visita. Então, adeus.
Antes de Domingos fechar a porta, olhou para a varanda de Flor. Sentiu quase pudor. Como encararia ela o reatar da amizade com Lurdes, sendo esta tão avassaladora? À tarde, mergulhou na leitura, no alfarrabista habitual, mas teve de voltar a ler, várias vezes, a mesma página. Estava desconcentrado.

(Continua, com Domingos, uns dias depois, a receber uma chamada, igualmente inesperada).