sábado, 4 de julho de 2015

O almoço de Delfininha

Delfininha chegou a casa com a broa que tinha comprado na padaria, aonde foi com algum custo. Expliquemos, então: a Delfininha, apesar de já ter assistido à passagem de muitos e muitos anos, continuava a deslocar-se bem. Muito bem, até. Continuava ágil. O arranjo quase diário do jardim também tinha ajudado a que Delfininha mantivesse laivos de juventude no andar.
Custava-lhe sair, porque se habituara ao recolhimento da casa e, desde menina, sentia-se diferente da vizinhança e o sorriso que lhes abria era mais de condescendência e tolerância religiosa. Habituaram-na assim em tempo de muita calada acomodação. Mas, no fundo, do que gostaria era de falar, de rir com a vizinhança, dizer graças, partilhar as histórias que todos contavam uns aos outros, mas que calavam logo que  Delfininha se aproximava. Ela não iria gostar nem compreender, com certeza. Ela tinha mais perfeições do que os demais.
E seria demasiado tarde para ser mais verdadeira?
Sempre foi discreta. Com o passar do tempo, pouca gente lhe visitava a casa e ela também poucas casas visitava.
Voltemos ao hoje. Partiu a broa, fazendo alguma força, porque a faca já não estava muito afiada, mas também a ela se tinha afeiçoado. Lá fora, o fogareiro estava em brasa e, em cima da grelha, Delfininha, com os dedinhos ainda fininhos, colocou as sardinhas - bem frescas, porque sardinhas congeladas não lhe sabiam bem, lembravam-lhe apenas um presente apressado e lucrativo.
Sentou-se à mesa. As sardinhas tinham de ser comidas bem quentinhas. Sentiu-lhes o gosto. Não, as sardinhas não podiam ser acompanhadas por água. Lavava-lhes algum do seu sabor.
Depois da refeição, com a cozinha arrumada e já sem cheiro das sardinhas, encostou-se no sofá e abriu a janela sem se importar que a vissem da rua. Adormeceu.
E sonhou com uma visita que tinha tido há dezenas de anos. Aconteceu ao jantar. 
Quando acordou, sorriu sem medo de sorrir de prazer. Ligou o rádio e, acreditemos ou não, o que ouviu foi "Quero é viver".

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