terça-feira, 21 de julho de 2015

O solitário da rua


Van Gogh

Abriu a janela da sala para deixar entrar mais luz e poder ver as árvores, agora sem camélias à mistura. Havia, porém, rosas. Que não via, quando estava sentado, mas sabia que estavam lá, olhando-as longamente enquanto as regava.
Abriu o computador e escreveu "Uma espécie de diário", pôs a data e começou a escrever.

Hoje não saí, apesar do sol e do calor. Gosto de ficar em casa nos dias livres e quentes de verão. Preciso de pessoas como de pão para a boca, mas afasto-me - não sei se voluntária ou involuntariamente - das multidões. Também viajo muito menos do que no passado. A crise afetou os funcionários públicos, criando outras opções e prioridades. Também fui aprendendo que há muitas formas de viajar, de observar e absorver o mundo.
Na repartição onde trabalho, acham-me simpático, cordial, atento às necessidades do público. Nunca ninguém me disse que, apesar da exposição no trabalho quotidiano, eu, no fundo, tenho características de um homem solitário. Um solitário que, quando chega a casa,  cultiva o seu quintal, trata do seu jardim, lê os seus livros, faz caminhadas em horas de fraco sol, que se identifica com alguns poetas, que é o último a sair da sala de cinema se o filme lhe agradou...
Ao trabalho chego a horas e habituei-me a não deixar que os meus problemas pessoais interfiram no atendimento das pessoas. Às vezes, custa, porque muitos utentes exigem de nós muito mais do que habitualmente dão. Eu lá vou aplicando o chavão de que "o cliente tem sempre razão" e explico, quase sempre com paciência, os procedimentos que estão na lei. Embora pareça muito certinho, às vezes, apetecia-me dizer: "bocê tem razão, que se lixe tanta papelada!", mas lá vem: "Claro que a senhora tem razão, mas eu ajudo-a a preencher o novo impresso e tudo fica resolvido".
Agora, vou regar o quintal e o jardim, aproveitando a crescente frescura do fim da tarde. Enquanto rego, há muitas ideias que me chegam. Muitas ligadas ao trabalho - que, felizmente, continuo a ter.
Se o local onde vivo fosse aproximado pelo zoom do Google Earth, lá se veria um homem de meia idade, devagar, a regar a sua horta - não fosse eu o solitário da rua!

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