domingo, 19 de julho de 2015

Um domingo de Delfininha

Há dezenas e dezenas de anos que Delfininha ia à missa ao domingo. Sempre à mesma hora. Dizia como a mãe já repetia: "à missa primeira". Se dissesse "primeira missa" pareceria que estava a falar de outra coisa que não a missa de domingo. Também o lugar que ocupava na igreja era sempre o mesmo, Como chegava mais cedo do que a maior parte dos madrugadores fiéis, não era difícil ter  o lugar costumeiro numa das primeiras filas.
Às vezes, punha-se a pensar nestes hábitos que já vinham do tempo anterior à mãe - também Delfina, mas sem diminutivo, porque a ninguém dava mimos e, por isso, de ninguém os recebia. Talvez do marido, mas dessas coisas não falava nem se falava, porque as sorridentes intimidades não eram para ouvir, transmitir ou deixar espreitar.
Pois, como eu dizia, Delfininha foi à missa. Quando chegasse a casa, começaria a preparar o assado que era o prato habitual do domingo. Antigamente era de frango caseiro, mas o cheiro da capoeira começou a incomodar Delfininha e foi pedindo que lhe matassem as galinhas, porque a tal cometimento nunca Delfininha havia sido habituada. Acabar-se-iam os ovos frescos, mas, como tudo na vida, teria vantagens e desvantagens.
E logo mandou limpar e pintar a capoeira, onde pôs vasos com plantas de diferentes cores. Um dia, dois sobrinhos foram à capoeira para ver as galinhas e deram com as plantas em vez das aves, que tentavam fugir quando os meninos as tentavam agarrar. A correr, iam dizendo: ó tia, as galinhas transformaram-se em plantas!
Mas voltemos a Delfininha. Delfininha chegou a casa, como em todos os domingos com saúde, pôs o avental e foi para a cozinha. Enquanto descascava as batatas, as cebolas e os alhos, ia pensando nas palavras que tinha ouvido na igreja - tal como a mãe, de muito pequenina, lhe ensinara. Curioso, de pouco se lembrava. Queria recordar-se e só lhe vinha à memória  a voz afinada que subira ao púlpito e que abria, de mansinho, os corações por onde entrava com litúrgica delicadeza.
Seria pecado ter esquecido tudo o resto? Não, com certeza que não . repetia para si própria, enquanto abria a janela para deixar entrar o ar luminoso da manhã.
Tocaram à campainha. Quem seria àquela hora ainda tão matinal!
Nem queria acreditar. Uma vizinha trazia-lhe um cestinho com ovos e dois pintos. Delfininha olhou, incrédula, os pintos. Apetecia-lhe ficar com os ovos e não aceitar os pintos, Não, isso, sim, seria pecado!

2 comentários:

  1. Pode ser que um dia a Delfininha que descasca batatas, cebolas e alhos, enquanto pensa na missinha primeira, e o Sr. Solitário, que rega a sua horta à hora da Poesia, se cruzem numa rua, num quintal, num horto, numa história qualquer...

    Nunca se sabe se a capoeira não terá de novo galinhas para espicaçar a curiosidade dos sobrinhos de Delfininha. Galinhas netas dos pintos que a vizinha lhe trouxe naquele domingo e alimentadas com milho e com as couvinhas tenras da horta do Sr. Solitário, que, entretanto, pegou nos seus trapinhos e foi partilhar cama e mesa com a menina Delfininha!

    Nunca se sabe o que pode acontecer numa qualquer rua... numa história- um-poucochinho-de-cada-vez que esta Mariana nos conta...
    :)

    Continua, Dolores, com estes teus textos tão bonitos e cheiinhos de gente também tão bonita!

    beijinho
    IA

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  2. És o máximo, Isaurinha. Obrigada pelas sugestões. Ainda não tinha pensado no possível encontro Delfininha-Solitário, mas, se calhar...

    Às vezes, as minhas filhas estão a contar alguma coisa e dizem: "Foi muito bonito..." Eu digo então: "Bonita bonita és tu".
    Neste caso, apetece-me dizer também "Gente bonita? Bonita bonita és tu!"
    Beijinhos
    M.

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