sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Play back

100 palavras

A família estava reunida para festejar um feliz regresso, uma partida por uma boa causa, dois aniversários…

Uma tia fez versos para serem lidos depois da sobremesa. Palavras simples, breves, com traços de afeto e de vivências diárias. Para animar a leitura, reuniu, previamente, as crianças presentes. Ficavam incumbidas de ler os versos do coro. Distribuídos os cartões e após uma leitura preparatória, M., a mais nova, disse preocupada: tenho dificuldade em acompanhar a leitura. Eles são mais velhos e leem muito depressa.

Passado um bocadinho, apresentou a solução: já sei, eles leem e eu faço play back.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A boneca

100 palavras

Tenho vontade de fazer bonecas de trapos. Para oferecer a crianças, juntando-lhes uma estória. Lembro-me de uma boneca que tive na minha infância. Poucas meninas tinham bonecas de celulóide, como dizíamos, e menos eram as que as levavam ao hospital.

Eu tinha uma de papelão e gostava muito dela. Um dia, ficou lá fora durante a noite, veio uma chuvada e a boneca desfez-se. A minha mãe viu-me triste e fez-me uma boneca de trapos. Se calhar é por isso que eu gostava de as ver nascer das minhas mãos. Sei, porém, que a vida nunca se repete.

Passeio noturno

Era madrugada. A cidade dormia sem calor e sem paixão. A lua refletia-se no edifício espelhado da avenida larga e deserta. Um carro passava de vez em quando. Depressa. Sem respeitar os semáforos que se acendiam e apagavam, dando à cidade uma respiração intermitente.

O silêncio frio e brumoso foi interrompido pelo latir de um cão. E pela voz exaltada de um velho mendigo. Homem e animal eram companheiros de todas as noites e de todos os dias. A conversa/monólogo irrompia pela passagem de uma pessoa do outro lado da avenida. Alguém extravagante que caminhava pausadamente, levantando os olhos para o prédio que captava a luz da lua. Ou do luar?

O mendigo, não se importando com o rosto da pessoa que passava, fixou sobretudo as pernas altas e as mãos longas. O néon de alguns anúncios, os semáforos e a luz da lua desenhavam os contornos da figura notívaga que se deslocava quase deslizando no passeio para reduzir o ruído dos saltos altos.

E o velho começou a atirar palavras como pedras. Que fosse sujar outra rua. Que aprendesse a ser homem. Que andasse sem sacudir o rabo. Que mais valia morrer do que ser homem e parecer mulher. Que era melhor viver na rua do que num prédio com gente de sexo duvidoso. Que preferia descansar no cartão já gasto e sujo a fazê-lo num colchão onde um gajo efeminado tivesse dormido…

Ia despejando os impropérios, enquanto aquele ser desenhado na noite se afastava devagar, subindo a avenida. Sem se perturbar. Sem acelerar o passo. Sem responder aos insultos. Caminhava meneando o corpo em ritmo lento. Sobretudo as ancas. E os ombros. E os braços. E talvez os olhos. E também a alma.

O cão acompanhava a áspera ladainha, ladrando, enquanto se aconchegava sobre o cartão e se encostava ao dono, buscando e dando calor.

Era longo o som raivoso das palavras, do latir do cão e dos passos pausados que iam pisando o passeio.

Houve até duas janelas que se acenderam. Mas logo a luz se apagou.

O vulto deslocava-se ao ritmo lento das nuvens e da lua.

Fazendo cessar o ruído cadenciado do andar, entrou no edifício espelhado. Resplandecente de luz feminina.

Antes de fechar a porta, ainda olhou para o fundo da avenida. O velho sem-abrigo e o cão tinham-se calado e pareciam dormir. Daniela respirou fundo. Podia finalmente descansar.


(Produzido no ateliê de escrita, em Serralves, há uns três anos)