sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

MARESIA


Van Gogh

Aqui estou em frente ao mar. Nunca pensei chegar até cá. Há setenta e cinco anos que vivo na minha aldeia de Trás-os-Montes. Lá nasci, lá vivi sempre e é lá que gostaria de morrer.
Quando era pequena, ouvia a minha mãe dizer que, na cidade, havia um mar de gente. E também falava do mar de água que ela dizia ficar muito muito longe. Demorava tanto a dizer a palavra que parece que ainda oiço aquele eco: looooooonnnge. Falava também do grande oceano. 
Senti sempre alguma curiosidade por saber como era o mar tão grande, assim como era o mar de gente. Nunca tive tempo nem oportunidade. Casei muito nova. Tinha a família, o campo, os animais… E também montanhas com neve ou secas pelo sol que pareciam barreiras.

Há muitos anos que os meus filhos saíram da aldeia. Foram abandonando a terra, enquanto se faziam homens. Como todas as outras pessoas mais novas e com força, foram trabalhar para longe e tudo foi morrendo aos poucos. Ficaram os velhos nas casas cada vez mais velhas e escuras. A aldeia, tal como as pessoas, envelheceu. Ficámos todos mais fracos e sós.

Há muito tempo que os meus filhos queriam que eu conhecesse a cidade e que eu visse o mar. Acabei por vir, porque não gosto de dizer não aos meus filhos. Já bastou o tempo em que não lhes podia dar os brinquedos que pediam. O que valia é que gostavam das histórias que eu lhes contava. Olhava à minha volta e logo inventava um continho, como eu gostava de lhes dizer. Lembro-me da história do milho cor-de-rosa, da cereja-brinco-de-princesa, da castanha que gostava de apanhar sol, da geada endiabrada, da bola de trapos que se desfez antes de chegar à baliza…

Agora aqui estou, em frente ao mar e só me apetece olhar e ficar calada. A luz é tão forte que mantenho os olhos quase fechados. Parece que estou numa festa, porque posso descansar e ver muita gente a passear. As pessoas não parecem ter pressa. A esta hora, se eu estivesse na minha aldeia, teria de recolher o gado e dar-lhe de comer. E acender o lume. Às vezes nem reparo nas cores do pôr-do-sol. E, no entanto, há turistas que ficam na estalagem que há na aldeia, atraídos pela paisagem do fim do dia, como se fosse íman descansado para os seus olhos.
Agora que estou perto do mar, parece que oiço tudo melhor. E vejo melhor também. O cheiro é fresco e azul. Afinal estou a gostar de ter vindo.
O barulho das gaivotas é que parece agoirento. Parece que chamam ou gritam! Fazem- me lembrar uma rapariga da aldeia que decidiu emigrar. Dizia que não sabia como as pessoas podiam viver encarceradas entre montanhas que escondiam o céu. Algum tempo depois regressou. Deixou crescer os cabelos crespos e punha-se a cantar canções estranhas até de madrugada, à janela. As músicas falavam de um amor e de segredos nunca contados.

O mar é muito mais largo do que eu pensava. Faz muito barulho e as ondas, quando saltam, são mais altas do que os rochedos. A espuma parece neve no inverno da minha aldeia.
 Quando abro os olhos e vejo este mar cheio de luz, sinto-me pequenina. Parece que me cega. Lembro-me da minha terra que está muito distante. Não quero regressar por enquanto. O mar não pode ser visto a correr. É como os montes. Quem os olha só da estrada não os fica a conhecer nem os guarda na memória.

 Olho para o mar e parece que estou a ver e a ouvir a minha mãe. Ela, uma vez, ensinou-me uma palavra que tinha ouvido de uma senhora da aldeia que tinha livros que lia numa casa à beira-mar. Essa palavra era maresia. Só agora a percebi melhor.
Assim como entendi a voz antiga de minha mãe.


domingo, 9 de fevereiro de 2014

Não sou o professor Marcelo, mas…




Não sou o professor Marcelo, mas…
Hoje, li também A estrela – um conto de Vergílio Ferreira, ilustrado pelo pintor Júlio Resende e publicado pela Quetzal.
A vivacidade da narrativa leva-nos a criar cumplicidades com aquela criança que quer guardar a estrela que conseguiu obter e esconder durante algum tempo.
Muitos dos caminhos do menino e da estrela são também partilhados por personagens simbólicas e que ajudam a pensar.
Um pequeno livro, mas do qual pode ficar uma grande vontade de ler outros.


ARA - Um romance de Ana Luísa Amaral



Lê-se em epígrafe
"De suave e aérea a hora era uma ara onde orar"
Fernando Pessoa
Livro do desassossego
Ao primeiro capítulo a autora chamou 
“Antes do resto”
“Epílogo” vem em 4º lugar a contar do fim,
O último ponto do índice é
“Ou seja, ara”
O livro, de 83 páginas, anunciado como romance na capa, publicado, em 1ª edição, pela Porto Editora em outubro de 2013, começa assim
“1. Mas as coisas não giram ao nosso compasso. eu não sou romancista. Se fosse romancista dividia-me em nomes de ficção - e disso não sou capaz. A própria ideia de fazer uma história aterroriza-me…”

Há passagens que fazem lembrar outros textos ou outras paisagens:
“As prendas de tarde, depois de almoço (mas as prendas são sempre a meia-noite, precisa a chaminé, o barulho fingido pela chaminé, as prendas são sempre a meia-noite depois da consoada).” P. 42

E leem-se frases onde rodam comboios, se observam japoneiras, se lembram brinquedos de infância, se sentem saudades de amores vividos e não vividos, se escrevem textos em átrio de hotel…

O texto é em prosa, mas com muita poesia dentro.

Li este livro durante umas horas da tarde de domingo.
E é, muitas vezes, ao domingo que se procura um altar.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Gostam muito de “cá tar”



Alguém falava, numa reportagem televisiva, de um empreendimento turístico numa antiga estação de comboios, em Portugal. Belíssima, por sinal, e desativada há anos, como muitas.
A entrevistada mostrava a sua alegria pelo sucesso do negócio. E disse: “as pessoas gostam muito de cá tar". 
Com os ouvidos mais ocupados no momento ou mais distraídos pensar-se-ia que se falava de Qatar, país árabe, mas não. 
Era de Portugal que se tratava, embora cá também haja negócios das arábias, o que não parecia ser o caso.

De seguida, vejo escrito “concerteza”. 
É bom tratar bem dos espaços, mas a língua portuguesa  também precisa de cuidados.
Com certeza que sim, o que também ajuda a gostar de estar cá!