sexta-feira, 8 de maio de 2015

O cão que mora na varanda

Sempre que lá passo, oiço o mesmo choro. Ou latidos. Ou gemidos. Não sei bem. O que sei é que o cão se faz ouvir em todo o prédio. Se a solidão traz ruído, aquele cão deve sentir-se muito só. Como a voz do animal vem sempre do mesmo sítio e nunca se vê o corpo nem a cabeça do bicho, percebe-se que à sua volta deve haver parede, mais parede, outra parede e ainda outra parede. Ou correntes, sei lá. Ainda que bonitas e coloridas.  Ou uma porta fechada junto à caixinha da areia cheirosa.
E como a varanda está exposta ao sol, às vezes, o bicho deve ter  calor e, outras, muito frio. Um frio fino de ter de ficar à espera dos donos um dia inteiro.
Dir-me-ão que é um animal, que não é uma pessoa, que deve ter água e comida, que tem um abrigo e muita gente não o tem...
Mas  porquê ter um animal em casa se ninguém está em casa durante todo o dia? 
Também acho bizarras situações como a de ir levar o cão todas as manhãs a casa de familiares como se de um bebé se tratasse. Nem oito nem oitenta, mas ter um animal preso todo o dia e a ganir de aflição e tristeza também me parece desumano., embora humano o bicho não seja.
À noite, o cão já não se faz ouvir. Não sei se é por ter companhia ou ... pela fraca força de tanto cansaço!


segunda-feira, 4 de maio de 2015

"Bebé real" - muitos assentos mas só um acento!



"As eleições inglesas entram na reta da meta, com os eleitores a votarem já na quinta-feira. Nos últimos dias, a campanha teve que dividir as atenções com o novo bébé real, mas agora a luta continua".
Este é um pequeno excerto de hoje do Expresso curto on line. Sempre direto e atual.

Pois é, a princesinha recém-nascida  vai ter direito a assento em muitos momentos da vida real (leia-se do reino, porque a realidade, muitas vezes, é bem diferente).
Porém, a palavra bebé só tem um acento gráfico (neste caso, agudo).
Em Português, as palavras só têm um acento gráfico. Em vocábulos como sótão, por exemplo, o til serve apenas para marcar a nasalidade.
Por isso, felicidades ao bebé real, mas tratemos também das nossas porque a realidade não anda lá muito feliz. Este "lá" é "cá", é claro.

domingo, 3 de maio de 2015

Paisagem verde com um negro melro dentro



Verde(s) de Serralves

  

"Palavras para a Minha Mãe"

Monet

mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses  
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.

pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.

às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.

lê isto: mãe, amo-te.

eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes.

José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"

sábado, 2 de maio de 2015

A bailarina que perdeu um sapatinho



Degas
A bailarina perdeu um sapato
Na rua e estava a chover
Quando a bailarina reparou
Voltou para trás a correr

Com uma grande angústia
Só lhe apetecia chorar
Porque sem o sapatinho
Não poderia dançar

E  para o concurso de dança
Muito público tinha chegado
Mas o que faria no palco
Com um pé descalço e outro calçado?

Largou o grupo e desceu
Por onde há pouco tinha subido
Sentindo o maior desgosto
que até então tinha sofrido

E sempre sempre a correr
Com pernita musculada
Olhava para toda a parte
Mas não encontrava nada

Até que ao fundo viu rosa
Mas não era nenhuma flor
Era o seu sapatinho
De que tão bem conhecia a cor

Ficou feliz e abraçou-o
Como se abraça um ente amado
Agora podia dançar
No palco tão desejado
E nem se ia lembrar
De que podia escorregar
Porque o sapato... estava molhado!

Hoje, logo de manhã, houve um espetáculo de dança
no Teatro do Campo Alegre, no Porto - Parabéns, Maria!
Ao subir a rua, vi uma bailarina a apanhar um sapatinho, 
cor-de-rosa, do chão molhado.
Daí estas quadras. Bem simples.
Gostei das danças. Bem complexas.




sexta-feira, 1 de maio de 2015

Aqui

Aqui, deposta enfim a minha imagem,
Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem,
No interior das coisas canto nua.

Aqui livre sou eu — eco da lua
E dos jardins, os gestos recebidos
E o tumulto dos gestos pressentidos,
Aqui sou eu em tudo quanto amei.

Não por aquilo que só atravessei,
Não pelo meu rumor que só perdi,
Não pelos incertos actos que vivi,

Mas por tudo de quanto ressoei
E em cujo amor de amor me eternizei.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Dia do Mar'

Maias em maio