sexta-feira, 2 de junho de 2017

BRINCAR


Sem os risos e as brincadeiras das crianças, que, na sua espontaneidade, tecem grinaldas de esperança para o mundo, a vida tornar-se-ia um ermo de aborrecimento e de vaidade.
Apenas aqueles que continuam a reservar espaço nas suas vidas para brincar e para desfrutar a vida mantêm viva a alegria de viver, o brilho nos olhos e a juventude no coração.
Para nos mantermos jovens, para conseguirmos que a alegria, a motivação e a força acompanhem os nossos dias, e que o riso, quando se solta, tenha a melodia dos quinze anos, devemos reservar espaço para a nossa criança interior, e tirar, de vez em quando, férias de todos aqueles “devo, não posso, deveria, já é tarde, não tenho tempo”.
Amadurecer não é sinónimo de aborrecimento, de sisudez, de cinzentismo. Amadurecer é saber do que gostamos, e como podemos sentir-nos mais felizes e tornar a nossa vida mais simples. Regra geral, só alguns privilegiados nascem com o dom da juventude no coração, mas esta capacidade poderá desenvolver-se se dermos espaço à improvisação, à espontaneidade, às surpresas da vida. Cultivar a capacidade de brincar é cultivar a juventude da alma, é como viver numa casa com vista para o jardim do Éden.
Brincar é atrevermo-nos a mostrar que não sabemos uma coisa e, no entanto, ficarmos contentes com a oportunidade de aprendermos. As crianças são simples, inocentes, espontâneas, sem duplicidade nem “agendas escondidas”, abertas à possibilidade, e flexíveis na sua adaptação às circunstâncias. Nas crianças, a frustração costuma durar menos tempo do que “um caramelo à porta de um colégio”, pois, logo em seguida, encontram uma coisa nova da qual tiram prazer e entretenimento, na procura ávida de novos horizontes de aventura. Poderíamos aprender com elas, não nos preocupando tanto com o que nos reservará o futuro, e, se por acaso o fizermos, que seja também com a esperança de que os tempos vindouros nos trarão dons enriquecedores para o nosso crescimento pessoal.
Entretanto, vamos desfrutar, criar sonhos, pintar sorrisos nas nuvens e brincar com as ondas do mar. Só se vive uma existência de cada vez, por isso saibamos agradecer os dons que a Vida nos proporcionou, e caminhemos até ao rio para encontrar rãs que nunca se transformarão em príncipes, mas em melodia do entardecer e em beijos de algodão doce. Brincar, para alcançar a felicidade de um coração livre de preconceitos, afastado da maledicência e da mesquinhez. Brincar, para sentir a bondade da inocência, que nos permite ver o melhor em cada pessoa, a luz em cada ser, por mais escondida que esteja. Brincar, para manter viva a capacidade do sonho e assim contribuir para criar uma realidade que ajude a transformar o mundo num lugar melhor e mais humano, mais solidário e generoso, com mais justiça e retidão.
Brincar, para entrelaçar os fios da tapeçaria da Vida, para descobrir o rosto oculto do sol e o sorriso luminoso da lua cheia. As crianças dormem e, abrindo as suas asas, sonham, riem com os anjos, não se levam demasiado a sério, e ainda menos se preocupam em ganhar muito dinheiro, em competir para conseguir os primeiros lugares ou em adquirir bens por uma questão de estatuto. Para elas não existe outra realidade a não ser a que habita na sua alma e povoa os seus olhares de encantamento e de esperança.
Brincar, para aligeirar a carga que se vai acumulando com os anos. Viver em paz consigo e com os outros, manter viva boa disposição, estar aberto ao novo, rir e desfrutar da vida, saboreando os pequenos instantes. É que brincar mantém a mente jovem, e o semblante acusa menos o passar dos anos, pois não se envelhece só porque os anos passam, mas porque o ser que habita o corpo físico vai apagando a sua luz e acaba por se limitar a viver na obscuridade de si próprio.

Rosetta Forner
Contos de Fadas para Aprender a Viver
Cascais, Pergaminho, 2005
(Adaptação)
 clubecontadores@gmail.com

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Dia Mundial da Criança

Travessia da infância

Quietos fazemos as grandes viagens
só a alma convive com as paragens
estranhas


lembro-me de uma janela
na Travessa da Infância
onde seguindo o rumor dos autocarros
olhei pela primeira vez
o mundo


não sei se poderás adivinhar
a secreta glória que senti
por esses dias


só mais tarde descobri que
o último apeadeiro de todos
os autocarros
era ainda antes
do mundo


mas isso foi depois
muito depois
repito


 José Tolentino Mendonça

segunda-feira, 29 de maio de 2017

As alemãs

Vieram as duas. Amigas há muito tempo, já várias vezes viajaram juntas: Veneza, Barcelona, Paris, Lisboa e outras cidades.
Uma fala muito bem francês, outra domina melhor o inglês e o italiano. Cada uma tem um mapa em papel e tentam ler os nomes dos sítios que querem visitar.
Gostam de ver igrejas, cafés bonitos, os edifícios, as ruas, as pessoas...
Vieram ao Porto, caminharam ao longo do rio, foram à missa à Sé (disseram que lhes chamou a atenção o som sssssss da nossa língua), percorreram a rua Santa Catarina, lancharam no Café Majestic, visitaram a igreja de S. Francisco...
Com um sorriso, disseram que há imensos grupos de turistas.  E que a cidade parece estar a renovar-se. E que os taxistas conduzem muito depressa. E que há muitas subidas e descidas, mas que tudo tem encanto. E que gostam muito das cores dos azulejos (uma delas aprendeu a palavra e a pronunciá-la bem).
Como as pernas já não estão bem seguras, quando uma se atrasa, logo a outra fica à espera.
Ontem, a tarde foi de chuva e tomaram chá em casa de familiares de uma delas. Tudo para elas tinha interesse: as fotos de família, as notícias dos mais novos, a marmelada sobre a mesa, as cerejas da época...
Já passaram os oitenta anos e parecem confiadamente felizes.


domingo, 28 de maio de 2017

Amália Rodrigues - Meu Amigo Está Longe

Gisela João - Meu Amigo Está Longe

Quem diz fado...

sábado, 27 de maio de 2017

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Diário de Mariana - Ham....ster!

Querido diário,
Estou a fazer um intervalinho, porque sinto necessidade de te visitar e escrever.
Só que o intervalinho é mesmo intervalinho porque o tempo aparece sempre cronometrado. X horas para as aulas, Y minutos para o recreio; X horas para o estudo, Y minutos para descanso...
Que vida! O que oiço em casa é que sou uma privilegiada e não tenho nada que me queixar, porque há milhões de pessoas que gostavam de ter a vida que eu tenho. Eu sei isso tudo, mas ter horas pra tudo e sem tempo pra relaxar também cansa. Gostava era de poder pensar assim: "Ei, fixe, não tenho nada pra fazer", mas tenho sempre a metralhar-me a cabeça o que já devia ter feito e não fiz e lá aparecem os grilos falantes: "Mariana, organiza-te melhor e não sejas preguiçosa". Brrrrrr...
Agora, mudando de assunto enquanto posso: tenho reparado que muita gente quando fala está sempre a intervalar com "ham, ham"... Deve ser mania ou influência de quem viveu no estrangeiro, mas por acaso a minha irmã que vive em Londres não diz e nem ganhou sotaque, apesar de só falar português com a Clarinha.
Às vezes, chega a ser irritante e como acho fixe tipo brincar com as palavras, apetece-me completar o "Ham, ham" com: HAM...ster!!!
Pronto, já tenho de ir para as aulas. Hoje por acaso entro um bocadinho mais tarde, mas o que é bom acaba depressa.
Um abracinho
Mariana

terça-feira, 23 de maio de 2017

Diário de Mariana - Que aflição!

Querido diário,
Daqui a dias, acabam as aulas e ainda tenho testes para fazer e um Contrato de Leitura para apresentar. Os professores andam aflitos para terminar a matéria, a minha mãe não me pode ver sentada no sofá sem estudar, mas stressa se me vê stressada: "Calma, Mariana, tudo se consegue se houver organização e vontade".
Só que ela diz estas coisas com uma voz de quem quer esconder que está stressada. Que aflição!
A cada passo, ouve-se muita gente conhecida a dizer: "Sejam felizes para aqui, sejam felizes para acolá", mas era melhor dizer que com esta correria e tanta coisa para fazer ser infeliz é mais normal.
O Gi anda numa de zen e diz-me para eu ter calma. Ele ainda não aprendeu que fico menos calma quando me dizem para ter calma!
Se me queixo deste sufoco de testes e trabalhos às minhas irmãs, logo que dizem: "se tivesses estudado como deve ser logo de início, não era nada disto". Não compreendem que o que está feito está feito.
Neste momento, acho que ninguém me pode ajudar. Não sou muito de chorar por tudo e por nada, mas se começasse até nascia um novo rio.
Pra mais, ontem à noite soube do atentado em Manchester. Em casa, ficamos logo atentos a tudo se acontecem coisas graves em Inglaterra. Não há direito. E há tantas pessoas boas como a minha irmã (é um bocado chata, mas acabo sempre por lhe dar razão, embora não lhe diga com facilidade), o meu cunhado e a minha sobrinha que acho horrível o que os terroristas fazem a tanta gente que só faz bem à Humanidade.
Nem quero pensar que acontece alguma coisa à Clarinha. Isso era super pior do que todo o sufoco na escola. Nem tem comparação possível. Que aflição.
E pensar que se vai a um concerto, como o da Ariana Grande, para se curtir música fixe e estar com pessoas fixes e acontece este massacre de repente. Não há direito.
Bem, vou estudar mais um bocado que a minha mãe já 'ta a stressar porque repete que 'ta cansada. É mau sinal. Que aflição!
Um abracinho, querido diário
Mariana

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Talvez isto seja Céu

A vida (ainda) é bela!

quinta-feira, 18 de maio de 2017

"Mulher sentada, vestido azul"

Pablo Picasso
Este quadro foi recentemente vendido,
 num leilão de Nova Yorque, por 45 milhões.

terça-feira, 16 de maio de 2017

Diário de Mariana - Salvador


Querido diário,
Caí na asneira de dizer à minha mãe que me sentia um bocadinho Salvador. Ela deu uma gargalhada e começou a cantar toda irónica: "Todos nós temos Amália na voz...".
Às vezes, arrependo-me de não ficar calada. Ao menos tu, querido diário, não me gozas nem me achas inocente.
Tu, querido diário, és tipo os peixes para quem o Santo António falou e, enquanto ouviam, se mantiveram caladinhos que nem ratos, apesar de terem a cabecita levantada. Quando estudámos o Sermão nas aulas, eu não achei muita piada, porque devia estar em dias de me apetecer falar e de querer ouvir respostas e reações, mas hoje concordo perfeitamente que quem nos ouve não esteja sempre a dar palpites.
Como a minha mãe teve aquela reação, eu nem disse nada ao Gi, porque haveria chatice pela certa e ainda lhe chamava palhaço e nem me apeteceu falar muito com ele.
Sei que sou idealista e talvez egoísta, mas por que é que nunca se encontra alguém que pense como nós? Se calhar, era grande seca, mas que sabia bem, lá isso sabia.
Que pontaria, o Gi acaba de me mandar uma mensagem. Não acredito no que estou a ler: Meu bem, ouve as minhas preces...
Ajuda-me, querido diário, porque, mesmo em silêncio, és o meu salvador.
Um abracinho
Mariana

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Diário de Mariana - Voltei

Querido diário,
Agora é que vejo como já não te visitava há tanto tempo. E gosto tanto de escrever nestas páginas, mas parece que o tempo é sempre pouco para tanta coisa que há para fazer. E este ano tenho tanta coisa para estudar. E Os Maias que nunca mais acabam. Para entrar mesmo lá dentro é preciso tempo e se leio aos bocadinhos, perco o fio à meada. Um dia destes, fechei-me no quarto à chave porque pensei cá pra mim: "a setora diz que é uma obra maravilhosa e só a ama quem a conhece" e eu quero ver se ela tem razão ou não. 
Não sabia era que ia dar tanta confusão, porque a minha irmã mais velha veio a casa, não me viu, chamou por mim e, como eu estava fechada no quarto, ela imaginou logo coisas, tipo baleia azul ou assim. 
Ela passou-se quando eu lhe disse que não podia abrir a porta porque queria acabar o capítulo. Como sempre, não me levou a sério e disse que ia arrombar a porta. Eu deixei de responder a pensar que ela me deixava em paz, mas nada disso, começou aos murros e ia pifando o fecho da porta. Fogo, que nervos.
Não tive outra solução e abri a porta, furiosa.
Acabou por me pedir desculpa e lá veio a lição de moral: "se às vezes não andasses na lua, não tinha havido esta cena".
Eu nem disse mais nada para não me chatear e acabei por fechar o livro mais uma vez e fui comer bolachas.
Eu acho que sou um bocadinho como o Salvador. É verdade. Não tremas a rir-te de gozo, querido diário. Eu acho que ele diz coisas mesmo fixes que não são copiadas nem para lhe baterem palmas e deve ser por isso que tanta gente gosta dele. Gostei mesmo quando ele disse que era feliz quando fazia as coisas à vontade. Eu disse logo: "estou contigo, Salvador".
E fico com vontade de ser boa pessoa quando estou a ouvir a canção que ganhou o festival, mas não acho bem que esqueçam a irmã dele, a autora da música e da letra. Parece que é tudo Salvador, Salvador, Salvador. Pareço eu e as minhas irmãs. Elas é que merecem todos os elogios e eu fico na sombra (esta comparação não teve jeito nenhum, mas eu sei que me compreendes, querido diário).

Até breve, querido diário
Um abracinho
Mariana

 

domingo, 14 de maio de 2017

A vitória

Ontem, nem parecia verdade o que se estava a ver: a Europa rendida perante uma canção portuguesa nada (felizmente!) festivaleira.
Ouvi que Salvador Sobral "era uma star anti-star". Talvez. De facto, tudo flui com naturalidade, beleza, simplicidade. 
Os dois irmãos são simpáticos, educados, cultos, criativos, atentos ao mundo - que melhor imagem poderia ser dada de Portugal?
E a canção é linda. É como se se apagassem as luzes de todos os artificialismos para viver a verdade da música, da voz, da letra e dos sentimentos.
A vitória bem merecida alegrou imensos portugueses. Ainda bem.
Salvador conheceu ainda outra vitória: a do Benfica no Campeonato.
Pois, não se pode querer tudo!!!

Com os nossos olhos

Ontem, ouvi uma jornalista (Fátima Campos Ferreira) dizer que o Papa tinha cumprimentado, individualmente, todos os jornalistas na viagem aérea de Itália para Leiria, e com todos trocou algumas palavras, olhando-os nos olhos, como se só essa pessoa estivesse no avião.
Hoje, vi imagens da tomada de posse do presidente francês Emmanuel Macron que cumprimentou os convidados, parando junto de cada um e não apenas os instantes fugazes de um cumprimento.
Estes, aparentemente, pequenos gestos podem, para além de algum ritual de cerimónia, significar que todas as pessoas são importantes. Possam ir modificando modos de relacionamento que, consciente ou inconscientemente, são postos em prática seja onde for.
Um olhar pode, de facto, facilitar a aproximação; desviar o olhar ou nem sequer dirigir os olhos na direção de alguém pode levar a um afastamento. Por exemplo, alguns alunos queixam-se de que há professores que não os "veem" porque não olham para eles.
Há muitos muitos anos, num pequeno hotel de termas onde estava com os meus pais, as pessoas confraternizavam, sobretudo ao final do dia. Havia, então, uma senhora que eu via no átrio muitas vezes e que se sentava, como os demais, para conversar, mas que me causava muita confusão. Quando falava, fechava sempre os olhos, não olhando para a pessoa com quem conversava. Eu interrogava-me por que o fazia, porque achava estranhíssimo que não olhasse o rosto nem os olhos das pessoas, como se neles encontrasse uma luz que não pudesse enfrentar. Foi uma imagem que me ficou e que é recorrente na minha memória. 
Felizmente, há coisas que vão mudando para melhor. Oxalá os nossos olhos também ajudem.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

"A casa dos beijos"

Gustav Klimt

"Iam os dois pela rua, de mãos dadas. Dir-se-ia que não pisavam o chão. Dir-se-ia que deslizavam, que vogavam, que voavam. A felicidade estava-lhes cunhada nos rostos; e também nos gestos, nos sorrisos, no olhar. Iam de mãos dadas pela rua e iam muito felizes.
Ela tinha os cabelos longos e soltos, o tronco alto. Os seios puxados para a frente, as pernas esbeltas e livres, saias curtas. Ele era um pouco mais alto, um pouco apenas, camisa aberta, calças de ganga, uma pequena mala, daquelas malas dos antigos guarda-freios da Carris, a tiracolo. Isso: a mala estava a tiracolo, e eles iam muito felizes, os dois, de mãos dadas.
Nem sequer reparavam que muitas pessoas os observavam. Algumas pessoas com a conivência de um sorriso. Outras pessoas com um ressaibo de inveja, no olhar de esguelha. Pararam um pouco em frente à Pastelaria Suíça, no Rossio, ele disse qualquer coisa a ela, ela encolheu os ombros. Não deixavam de sorrir enquanto conversavam. Depois entraram e beberam café.
A esplanada da Suíça estava cheia de sol e de estrangeiros. Um vendedor de lotaria ofereceu jogo. Um rapaz sujo pediu algum dinheiro. Dois homens encontraram-se e abraçaram-se com efusão. Uma mulher apressada deu um encontrão num cego. Um cigano tentava vender relógios. Um polícia contemplava as coisas com evidente indiferença.
O rapaz e a rapariga decidiram, depois de tomar café, passear pelo Rossio. Estavam muito felizes. E é bom que se repita isto, porque as pessoas, habitualmente, andam para aí cheias de infelicidade, ao menos que haja alguém feliz, mesmo que seja uma ou duas pessoas.
Passeavam pelo Rossio e, de vez em quando, davam beijos, sempre sorrindo um para o outro, como se estivessem a sorrir para todo o mundo, e todo o mundo experimentava uma grande sensação de espanto e de júbilo. Paravam junto às montras do Rossio, olhavam, claro, mas não fixavam nada do que nas montras se expunha, só sabiam um do outro, só estavam ali juntos para apenas estar um com o outro, juntos e assim mesmo: de mãos dadas e aos beijos.
Foi numa dessas ocasiões. Beijavam-se tão felizes, tão um do outro, que essa felicidade molestou uma senhora obesa e flácida. A senhora obesa e flácida estacou, indignada, a fuzilá-los com as balas do ódio. E gritou:
— Não podiam fazer isso em casa?
A rapariga dos longos cabelos e seios puxados para a frente deixou o beijo a meio. O rapaz experimentou uma estranha sensação de pasmo. Olharam-se. E foi então que a rapariga respondeu, indicando tudo em derredor:
— Esta é a nossa casa!
Nesse instante trémulo, o mundo, feliz, começou a aplaudir."

Baptista Bastos, in Lisboa Contada pelos Dedos


Sempre gostei desta crónica pela bela expressão das emoções,
pelos laços amorosos entre duas pessoas, pelo pulsar da cidade, pelo abraçar de um espaço público também amado...
Quando, ontem, soube da morte do escritor, logo me lembrei deste texto.
Triste é a morte, mas quando a obra se abre logo aos olhos, a vida fica sempre a ganhar.

"O mundo precisa de um Papa?"

 

"Verdadeiramente, o que se está a perguntar é se o mundo precisa de um pai. Não há dúvidas que a figura do pai precisa de ser recuperada. A sua autoridade não tem de ser a da severidade e intransigência da lei, mas a do exemplo e da confiança. O pai não tem de ser a personagem punitiva que nos rege pela culpa, mas aquele que nos inspira pela sua coragem e misericórdia. O mundo pode amar o Papa Bergoglio por muitas razões, mas talvez a mais decisiva, a que mais nos comove e transforma, é sentirmos ao escutá-lo que estamos a escutar um pai. E infelizmente o mundo não tem tantos assim

É evidente que a modernidade lança um olhar de desconfiança em relação a títulos do âmbito religioso que lhe soam como arcaísmos, ilegíveis à luz da sua mundividência: vigário de Cristo, sumo pontífice, sucessor do príncipe dos apóstolos, servo dos servos de Deus, etc.
De facto, os títulos transportam consigo uma espessura histórica inalienável e uma semântica que não é só passível de ser criticada do exterior, mas tem sido, deve dizer-se, alvo também de um debate interno persistente. Aí, o Concílio Vaticano II (1962-1965) desempenha um papel absolutamente referencial na atualização simbólica da representação do poder espiritual. O Papa Paulo VI foi o último a usar a tiara papal (uma coroa particular construída por três coroas que indicavam o tríplice poder do pontífice: Pai dos Príncipes e dos Reis, Reitor do Mundo e Vigário de Cristo na terra). Usou-a na coroação papal, em 1963, e aboliu em seguida o seu uso.
Paulo VI foi também o último a vestir o manto papal, já depois de o ter tornado mais breve. O Papa João Paulo I, por sua vez, foi o derradeiro a mostrar-se na chamada sedia gestatoria (uma espécie de trono móvel), mas sem o esplendor que vemos nas estampas de outras eras. Com o Papa João Paulo II entramos na época do papamóvel. Estamos a falar de uma revisão de símbolos? Sim. Mas esta redefinição simbólica não deixa de ter consequências a nível da compreensão do papel do Papa. Esta compreensão tem uma dimensão ad intra, que se prende com o ecumenismo entre as várias igrejas cristãs historicamente independentes do Bispo de Roma, e uma dimensão ad extra, que tem a ver com o papel do papa para o mundo.
Olhemos para a primeira dimensão. O Papa João Paulo II (que teve sempre como teólogo de suporte Ratzinger, o futuro Bento XVI) compreendeu bem que a questão do papado do bispo de Roma continua a não ser completamente pacífica entre as diversas denominações cristãs. E escreveu, em 1995, uma encíclica sobre o diálogo ecuménico, intitulada “Ut unum sint”, onde surpreendeu muitos por ter mostrado abertura para refletir sobre o que significa o próprio papado. Escreve ele: “é significativo e encorajador que a questão do primado do Bispo de Roma se tenha tornado atualmente objeto de estudo, imediato ou em perspetiva, e igualmente significativo e encorajador é que uma tal questão esteja presente como tema essencial não apenas nos diálogos teológicos que a Igreja Católica mantém com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais, mas também de um modo mais genérico no conjunto do movimento ecuménico” (nº 89). Quer dizer: o tema da configuração do papado continua sobre a mesa. E é interessante, a esse nível, constatar que, desde a primeira hora, o título que o papa Francisco reserva para si é o mais despojado e o que coloca menos problemas em termos ecuménicos: o de bispo de Roma. Além de estar a revalorizar imensamente a teologia da sinodalidade.
Mundialmente, e já para passarmos à dimensão ad extra, o bispo de Roma é conhecido como Papa, e é um dos títulos espiritualmente mais densos e eficazes. Deriva do termo grego pàppas, uma fórmula familiar para dizer “pai”, e que é atestada desde o século III. Por isso, quando se pergunta “o mundo precisa de um papa?”, verdadeiramente o que se está a perguntar é se o mundo precisa de um pai.
Se há figura que a contemporaneidade tem demolido é a paterna. Jacques Lacan falava da “evaporação do pai” da nossa civilização, com a turbulenta orfandade para que tal nos remete. Não há dúvidas que a figura do pai precisa de ser recuperada. E isso só pode acontecer, não pela reposição dos velhos paradigmas parentais de que saudavelmente nos libertámos, mas pela emergência de novas figuras de paternidade, que a reinventem em chave positiva. A autoridade do pai não tem de ser a da severidade e intransigência da lei.
Deve ser a do exemplo e a da confiança. O pai não tem de ser a personagem punitiva que nos rege pela culpa, mas aquele que nos inspira pela sua coragem e misericórdia.
Concluindo: o mundo pode amar o Papa Bergoglio por muitas razões, é verdade. Mas talvez a mais decisiva, a que mais nos comove e transforma, é sentirmos ao escutá-lo que estamos a escutar um pai. E infelizmente o mundo não tem tantos assim."

José Tolentino Mendonça

in EXPRESSO CURTO, 10 de maio 2017

domingo, 7 de maio de 2017

Dia da Mãe

Almada Negreiros

segunda-feira, 1 de maio de 2017